
Era um dia diferente. Naquele domingo [30 de março de 2025] ainda não tinha certeza se iria para o estádio.
Afinal, era inusitado, pois começamos perdendo. Geralmente, a derrota chegava à tarde ou noite, como aprendemos na prática. Mas logo cedo, um gol contra a vida.
A notícia do dia estava doendo em todos: o tio de Jackeline (Vilmar, sempre atencioso, olhar sereno, com enorme bonomia, sempre vestindo um boné estiloso, enfim, uma boa pessoa) tinha morrido.
Toda a família da minha esposa partiu para a zona rural de Faina e foi se despedir dele.
Dona Eva, nossa convidada para ir ao jogo naquele domingo, não poderia mais. Diga-se: ela não tinha dado o sim para a partida. Estava preocupada com a reação psicológica do torcedor do Vila para a derrota já encomendada. Era então um desfalque no estádio.




Quando bateram 14h no celular peguei as meninas e Jackeline e partimos. Com o mesmo receio da sogra, não estava ainda decidido a ver uma partida em que o Vila Nova teria que vencer de pelo menos 3 a 0 para ser campeão goiano – um título engasgado que não saía desde 2005, ano em que a minha filha Júlia nasceu.
Era, então, uma jogada de risco para a família: enfrentar engarrafamentos, ir até o Serra Dourada, chegar num campo arrebentado de torcedores [ como diria o cronista Mário Filho] e, sim, abraçar cambistas vorazes. Não comprei o ingresso antes, que foi entregue de mão beijada para torcedores por míseros R$ 10, já que na partida de ida, em Anápolis, o Vila Nova perdeu de 2 a 0 e – claro – caminhava para a derrocada final em casa. Perguntei ao meu cérebro: que louco iria para o estádio com o time precisando ganhar de 3 a 0? Pois bem, os vilanovenses foram. Meu amigo Márcio, do Procon, disse: “Eu vou. E se ele vencer? Faremos história juntos”.

Mas eu duvidava ainda: ir ao estádio naquelas circunstâncias era pedir para estragar o domingo e enfrentar mais uma vez a sensação ruim da perda. Entretanto, a ideia do Márcio – que era geral na ala da torcida messiânica – estava nos puxando para o campo. “Vai que…eu estava lá!”, ficava martelando entre o córtex e hipocampo, com memórias de milagres esportivos.
Pois bem, chegamos às 15h30 e iniciamos a luta pelos ingressos. Catarina e Valentina não pagavam. Eu, Jack e Júlia sim. Os preços giravam em torno de R$ 80, R$ 100, R$ 150. Fiquei indignado. Mas a torcida e o entusiasmo – com gritos de guerra e batuques – aplacavam qualquer gasto. Ninguém usou camisa vermelha no dia. É verdade: Jack tentou vestir Catarina. Mas não deu certo. Eu estava com meu modo ‘revoltz’ ligado: camisa-preta-ratos-de-porão dada pelo meu irmão, Ulisses Aesse, naquela manhã, após caminharmos eu-ele-Valentina na Feira da Marreta na Vila Abajá.
Mas eu duvidava ainda: ir ao estádio naquelas circunstâncias era pedir para estragar o domingo e enfrentar mais uma vez a sensação ruim da perda
Mas de fora do Serra, a cena: vendedores de bandeiras, churrasquinho, energéticos. E os malditos cambistas contando moedas. De repente, um senhorzinho chegou no canto e começou a distribuir ingressos por R$ 70. Era um preço justo diante o dobro cobrado minutos antes. Pagamos, pegamos o ingresso e entramos no Serra, que, apesar do tempo, 50 anos de existência, ainda está lá como sempre: imponente, arena aberta, com uma panorâmica deslumbrante. Nosso maior monstro de concreto brutalista estava ferido, com rachaduras e pequenos desgastes do tempo. Mas com torcida era uma obra de arte arquitetônica.
Na entrada, eu e Valentina treinamos o grito: “viiiiiiLA!!!!” Ela fazia mais completo e característico só dela: “viiiiiiiiiiLA noOoOoOva!”
Dentro, uma mulher era empurrada pela Polícia Militar. Valentina se assustou. Parece que a mulher desejava separar os policiais do marido, alvo de algum baculejo. Tentamos entrar em um dos portais. Lotado! Caminhamos para o próximo. Lotado! Não cabia um nariz a mais. Até que saímos pela lateral, aberta, e nos deslocamos para a borda no canto do gol voltado para o setor Sul. Jack carregava Catarina. Comprou pipoca por R$ 20. Depois uma água. E era isso: um mar de gente urrava em massa, ricocheteando o som da torcida de um lado para o outro. O Serra estava vermelho apoteótico. Da cor do Vila e do vermelho-sol indo embora.
Gravou-se na carne aquele grito dos escravos de Giuseppe Verdi: “Viiiiiiiiiiiiiiiiiila!!!”.
Um cantinho do lado direito, um ponto branco e preto, guardava a torcida adversária silenciosa e concentrada. Pronta para o baile marcado ao final do jogo de ida.
A partida começou e vimos pela fresta a bola rolando. O Vila precisava vencer. Um, cinco, dez, vinte minutos. Mas nada acontecia. Um torcedor disse aos 40 minutos: “Olha a cara dos jogadores! Estão tristes, cansados. Nem correm atrás da bola”.
O bicho papão de Anápolis estava seguro, forte, uma muralha. Eles empinavam o peito; nós baixamos a cabeça e enfiamos na terra como avestruz.
Olhei para a torcida do Anápolis e pensei: será que toda esta máquina colorada, esse e-xér-ci-to de 34 mil histórias de vida-sofrimento vai perder para aquele grupo de torcedores (deveriam ter uns 4000 anapolinos) e deixar uma alegria colorada desta desmoronar?
A torcida naquela altura do campeonato mostrou que era o maior patrimônio do Vila. Foi heróica para um confronto cheio de dúvidas. E seguiu até o fim.
A chegada do começo do fim da primeira etapa mostrava que o medo sucumbiria nossa coragem. A melancolia dava as caras.
Na minha cabeça – funcionando ali e de pé – o Vila perderia com um gol traidor desses em que o time avança demais e fica desguarnecido atrás – tipo o jogo de ida. Ou terminaria em empate – um final honroso e fácil de explicar para as meninas: “Perdemos. Mas empatamos. Vamos embora daqui olhando pra cima!”. Uma vitória de um gol doeria demais (não serviria para nada). E uma queda nas penalidades seria uma bomba emocional irrecuperável capaz de formar gerações de loucos e ansiosos.
Quando eu não pensava isso, focava na bola. E o jogo – pois – seguia para o fim. Aos 45 minutos, Jack então se afastou e foi sentar de forma improvisada. Ficou debaixo das cabines de autoridades enquanto amamentava Catarina. Eu e Júlia ( com um olhar curioso) revezávamos tentando ver as frestas finais entre um torcedor e outro. Coloquei Valentina nos ombros para que ela pudesse ver o campo.
Chamava Júlia quando surgia um espacinho a mais para enxergar as jogadas. Ela via o que eu via: quase nada.
E assim terminou o primeiro tempo: não gostamos do resultado. O que ouvimos…decepcionamos. Era mais um ano sem título. O Vila não jogou nada. Sem ameaças ao gol.
Com o intervalo, abriu-se espaço para ver o campo: ficamos todos juntinhos e formamos nós mesmos o paredão que antes nos impedia de ver. Valentina achou graça do homem vestido de Tigrão no campo.
O Vila voltou para o campo. E nada do Anápolis, que queria literalmente cozinhar o tigre. O Vila lá…aquecendo…E lá vem o Anápolis num ralentando… len-ti-dão-maior-do-que-dan-ça-de-tar-ta-ru-ga.
Passaram-se os primeiros minutos e nada de ataque. Olhei para Júlia e disse que precisávamos preparar nossa saída tranquila do estádio para não estressarmos as crianças.
Mas eis que aos 16 minutos, Jean Mota cruza na área, Poveda bate de cabeça e o zagueiro Tiago Pagnussat deu um toque de calcanhar. Era o gol!
Pulamos e gritamos: imagine os 38.412 torcedores (como disse, uma parte era do Anápolis, que também gritou, só que de ódio) em êxtase! Cerveja voou pra cima da Valentina, que se mostrou assustada com o grito em uníssono. O cheiro nauseabundo embrulhou a cara de Valente que disse na hora: “Nunca mais volto num jogo!”. Júlia se esquivou e nada caiu nela.
Nesta hora, Jack e Catarina estavam sentadas distantes, fora do campo de visão do jogo. E não sei como receberam aquele gol. Mas viram nossa festa. A partir dos 20 minutos começamos a sair do estádio crentes que o Vila viraria agora um Tigre! Fui saindo e guardando a cena: os sorrisos e alegrias de tantos frustrados, gente que há 20 anos esperava vencer a decisão do Goianão e segurava uma gloriosa bandeira.
Mas o resultado não bastava. Muito teria que ser feito. E eu – a contragosto – fui embora. Saímos e de fora uma massa sonora invadiu as imediações do estádio como círculo. Era som de gol. Mas não muito claro. Um motorista de ônibus então confirmou: aos 28 minutos, Igor Henrique marcou para o Vila num chute bonito. Era o gol que faltava para os pênaltis – com o tento, com os dois jogos, o placar geral estava 2 a 2. Pênaltis à vista!
Seguimos para o carro, cantando e gritando Vilaaaaa!!!
Entramos no carro e seguimos ouvindo o jogo pelo rádio.
Deixei Júlia em casa, no setor Universitário, e seguimos. O jogo estava empatado e atravessava os acréscimos quando – aos 51 minutos – Renan Cocão marcou contra. Era o gol do título. Inacreditável. Surreal. Impossível.
Os fogos tomavam conta das ruas. Ali no início do Criméia Leste, desci, comprei sucos de uva e um Extrapower. Só se ouviam gritos de Vila!
Cheguei ufanista em casa. Quando tranquei o portão, o futuro passou na minha cabeça – com o Vila destravado, Júlia aprovada no vestibular, a política econômica nos trilhos e até às passagens de avião baratas para levar Jack em Buenos Aires se encontrar com Mafalda. E não custava nada tentar: jogaria na Mega-Sena e venceria!
Para uma torcida que sempre perdia, aquela vitória era diferente de tudo. Não nos roubava a humildade. Mas nos deixava mais confiantes, com esperanças de que a vida pode melhorar. Naquele dia, quando o sol esfriou e ficou indiferente, o Vila mostrou que um simples gol poderia furar uma muralha e antecipar a festa que se anunciou no comecinho da noite.
Dias depois escrevi este texto para rememorar aquele dia – não como qualquer dia, mas especial. Pensei em ser suscinto como José Lins do Rego em seus relatos sobre futebol. Mas neste caso específico, infelizmente, não. O título era muito prosáico para ser resumido. Será quando voltaremos a ser campeões?
Welliton Carlos é jornalista, advogado, mestre em Direito e doutor em Sociologia pela UFG